sábado, 3 de setembro de 2016

AQUARIUS (2016)



SOMENTE UM ADJETIVO JÁ BASTA: MEMORÁVEL.

país produtor: Brasil // direção e roteiro: Kleber Mendonça Filho // elenco: Sônia Braga, Humberto Carrão, Maeve Jinkings, Julia Bernat, Irandhir Santos

sinopse: Para construir um novo empreendimento imobiliário em Recife, uma construtora compra todos os apartamentos de um pequeno edifício na praia de Boa Viagem, menos o da irredutível Clara, uma jornalista que viveu boa parte de sua vida nesse endereço. A partir daí, ela passa a sofrer com ameaças e o assédio antiético e pouco ortodoxo da construtora para que mude de ideia.

Metascore: 85 (metacritic.com)

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Que coisa maravilhosa ver um filme que se passa em um centro urbano brasileiro que não seja Rio de Janeiro ou São Paulo. O diretor, um talento inquestionável, promove aqui um apaixonante libelo pela preservação das coisas e as lembranças que elas carregam. Mas Aquarius é também uma obra envolta em um embate político e ideológico muito caro aos brasileiros, de que falarei mais adiante.

A personagem principal é Clara, uma jornalista sessentona que cresceu e viveu no Edifício Aquarius, de frente para a Praia de Boa Viagem, em Recife. Foi lá que ela criou os seus filhos, é lá que ela tem as memórias vivas de sua mãe e seu falecido marido. Acontece que uma construtora, visando erguer um novo edifício no lugar do Aquarius, resolve comprar todos os apartamentos. Menos o apartamento de Clara, que nem mesmo aceita negociação.


Eis aí o conflito do filme. De um lado, uma senhora querida e respeitada por todos da redondeza, querendo preservar suas coisas, suas memórias. Do outro, "a força da grana que ergue e destrói coisas belas". Eu, como espectador, logo de cara já fico sabendo: não há oferta que pague pelas memórias de Clara. Mas não deixo de me surpreender. O edifício é simpático, mas pouco oferece além da localização. A oferta da construtora daria para Clara comprar um ótimo apartamento, em um edifício melhor, na mesma avenida. Ok, mas e as lembranças, que não podem ser vendidas, como ficam?


Diante dessa trama quixotesca, o principal desafio do roteiro é fazer com que o espectador entenda o lado de Clara que, sozinha, resiste naquele edifício. Que enfrenta o jogo sujo da construtora, forçando-a a ceder. Para isso, o diretor e roteirista entrelaça o embate de Clara contra a construtora com cenas que evocam o poder das coisas, das memórias, da simplicidade.

Entre essas cenas, há duas especiais pela excelência com que foram conduzidas. Uma vem logo no início. É uma festa de família no final dos anos 70. Há um clima de liberalismo no ar. Na vitrola, Gilberto Gil e seu disco Realce põe todos para dançar com "Toda Menina Baiana". É impressionante o naturalismo alcançado por essa sequência (e que permeia todo o filme). É um trabalho admirável e muito, muito difícil de ser alcançado. Só grandes diretores conseguem tal resultado.

Outra cena mostra Clara sendo entrevistada por uma jornalista jovem e despreparada. Clara fala que não tem problema com mídias digitais, que houve Spotify e mp3, mas que precisa de seus discos. Ela então pega um exemplar de Double Fantasy, último disco de John Lennon. Dentro há um recorte de jornal com uma entrevista que Lennon concedeu semanas antes de ser assassinado. Clara comprou esse disco em um sebo e descobriu surpresa aquele recorte dentro do encarte. O disco, somado ao recorte, adquire para ela um significado especial. É como uma mensagem dentro de uma garrafa, lançada ao mar. São as coisas tentando resistir à imaterialidade digital. A jovem jornalista não entende muita coisa, ou não se interessa.


No decorrer do filme, algumas perguntas foram sendo formuladas por mim. E concluo que a intransigência de Clara, a sua força, pode às vezes boicotar a sua própria felicidade. Ela a quase 40 anos extirpou um câncer do seio direito, mas na sua forma de encarar a vida, não se vale de uma cirurgia plástica para reformá-lo. Por causa disso, vemos em uma cena um homem, com quem ela tem um curto relacionamento, se afastar. Não deve ter sido a primeira vez que isso ocorre. Já eu, na minha cadeira de espectador, fico até imaginando a sua filha, com quem Clara tem um duro e afetuoso embate, lhe recomendando por diversas vezes uma consulta com um cirurgião plástico, da mesma forma como recomenda que ela aceite a proposta da construtora. Será que sua filha no fundo não tem razão em seu pragmatismo? Por que manter aquela marca do passado? Por que manter o imóvel sem vizinhos ao redor, em tão contrárias circunstâncias? Responder essas perguntas me leva à razão de ser do filme e à originalidade e humanidade da personagem Clara. Adoro heroínas femininas.


Aquarius ganhou publicidade no Brasil quando seu diretor e parte do elenco aproveitaram o Festival de Cannes para defender Dilma Rousseff contra o processo de impeachment. Em seguida iniciou-se uma celeuma desnecessária e uma absurda campanha de boicote, em que se acusa o filme de usar dinheiro público via financiamento da Lei Rouanet, para defender um governo corrupto. Acho esse tipo de pensamento um tanto equivocado. A Lei Rouanet pode ajudar a obras primas sem grande apelo comercial, como esse filme, existirem.

Além disso, os ecos políticos que ajudaram Aquarius a ser adotado pelos que apoiam a presidente destituída Dilma Rousseff são tão sutis que tornam esse filme atemporal. Mais palmas para o diretor, dessa vez por sua sutileza. Me poupou de um discurso ultrapassado e infantil.

Direção segura e em muitos momentos genial, elenco soberbo, ideias pertinentes. Aquarius é, por enquanto, o melhor filme do ano.

Visto no Net Gávea, no Shopping da Gávea, Rio de Janeiro, em setembro de 2016.

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