terça-feira, 27 de setembro de 2016

CIDADE DE DEUS, 10 ANOS DEPOIS (Brasil, 2015)


UMA EXCELENTE PREMISSA DESPERDIÇADA.

país produtor: Brasil
direção: Cavi Borges, Luciano Vidigal

sinopse: Após 10 anos que o emblemático Cidade de Deus foi lançado, como estão as vidas dos seus jovens atores e atrizes?

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Cidade de Deus é o mais bem sucedido filme brasileiro da história com feitos que vão muito além dos quatro Oscars aos quais concorreu. É um clássico do cinema mundial que até hoje é lembrado, citado e discutido. Está na 27ª posição no Top Rated do iMDB, com 8,7 de média nas cotações dos usuários. Ganhou prêmios mundo afora, virou um ícone pop no Brasil.

Grande parte do sucesso do filme deveu-se ao cuidado de seus diretores, Fernando Meirelles e Kátia Lund, na escolha e ensaio do elenco. Com poucos rostos conhecidos, muitos sem nunca ter atuado na vida, os diretores optaram por oficinas e ensaios afim de preparar e definir os papéis, em um processo que levou meses.

Pobres e sem maiores perspectivas na vida, alguns desses futuros atores eram da própria Cidade de Deus, caso de Leandro Firmino (Zé Pequeno). Outros eram do Vidigal, onde há até hoje uma sólida companhia de atores, a Nós do Morro. Do núcleo dessa companhia em Nova Iguaçu vieram outros nomes para o filme. Agora, você imagina, o que não deve ter passado pela cabeça dessa turma, quando se viu trabalhando em um filme, "virando ator" e, mais ainda, diante do sucesso mundial, sendo assediado e reconhecido? Como cada um lidou com isso, como cada um aproveitou a oportunidade, temos aí o enredo desse documentário.

Apenas dois nomes do elenco sensacional de Cidade de Deus não eram, em 2002, desconhecidos. Matheus Nachtergaele (Sandro Cenoura) já era um ator com projeção nacional. Seu Jorge (Zé Galinha) tinha uma carreira musical bem delineada e debutava na tela grande. São os estranhos no ninho. Muito pouco para um público conservador e ávido por estrelas de novela. É incrível como Cidade de Deus quebrou paradigmas e se impôs com um elenco praticamente desconhecido e negro. Um feito para a história do cinema.

Há revelações incríveis nesse documentário. Ficamos sabendo por exemplo que o ator principal, Alexandre Rodrigues (Buscapé), tinha a proposta de levar o cachê de dez mil reais ou então receber uma porcentagem sobre a bilheteria. É bonita a forma como ele conta isso, entre risos arrependidos, pois ele escolheu os dez mil de que tanto necessitava, decerto.

Há outros momentos muito bons, como quando acompanhamos os percalços de Rubens Sabino (Neguinho), com um olhar vidrado, relembrando o dia que foi preso por furto. Inteligente, ele ainda filosofa sobre o sentido do próprio documentário, segundo ele, a serviço dos egos, inclusive o próprio. Rubens é dependente químico e em 2015 resolveu sair da Cracolândia e recomeçar a vida em Portugal, com a ajuda de um amigo. Mais uma ajuda, dentre tantas que recebeu de pessoas como o ex-baterista do Rappa, Marcelo Yuka, e do próprio diretor Fernando Meireles. Não sabemos se essa nova oportunidade de recomeçar foi bem aproveitada. Não há mais notícias sobre essa pobre alma atormentada.

Outro momento marcante é quando a produção armou o encontro entre Seu Jorge, hospedado no Marina Palace no Leblon, e Felipe Paulino, a criança que chora ao levar um tiro na mão. Felipe trabalhava então nesse hotel, como jovem aprendiz, um jeito mais bonito de falar estagiário. Com um certo constrangimento no ar, as câmeras testemunham o sucesso e o fracasso trocando algumas palavras e um abraço forçado. Felipe Paulino, por problemas familiares, desistiu da carreira artística.

Todos esses momentos estão nos dois primeiros terços do filme. É quando se acompanha o que a vida fez com esses jovens e muitos outros. Assim vão se passando os minutos, com o filme basicamente saciando a curiosidade do espectador. Apesar do claro interesse que desperta, já nota-se aqui a falta de uma discussão mais direta sobre os motivos do sucesso ou os erros que levam ao fracasso. 

O grande problema do filme está no seu terço final quando, abruptamente, passa a levantar os porquês dos fracassos, relacionando-os com as dificuldades de um negro ser chamado para papéis na TV ou no cinema. Uma discussão pertinente, mas que soa meramente panfletária e sem a devida base contextual. A edição infelizmente perdeu muito tempo de filme discutindo bobagens como valor de cachês. Maior ganho para a discussão seria dar para o espectador uma visão mais ampla sobre a questão racial no Brasil, que se reflete não só na TV e no cinema, mas em todo o mercado de trabalho. Um certo vitimismo também é perceptível, sem levar em conta que simplesmente nem todos aqueles jovens atores desenvolveram o talento suficientemente para se consolidar no audiovisual.

E afinal, por que a ausência de Fernando Meireles e Katia Lund entre os entrevistados? Se recusaram? Não foram nem contactados? Seja como for, eis aí um dos maiores erros dessa produção, repleta de boas intenções, mas sem o devido preparo de seus realizadores para dar conta de todas elas.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

FLORENCE - QUEM É ESSA MULHER? (Florence Foster Jenkins, 2016)


NA COMÉDIA OU NO DRAMA MERYL STREEP É GENIAL.

país de produção: Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte // direção: Stephen Frears // roteiro: Nicholas Martin // elenco:  Meryl Streep, Hugh Grant, Simon Helberg

sinopse: Baseado em eventos reais, o filme conta parte da vida de Florence Foster Jenkins (1868 - 1944), uma mimada grã-fina que insiste em cantar em público, mesmo não tendo talento.

Metascore: 71 (metacritic.com)

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Se há algo de genial nesse filme, é a atuação de Meryl Streep. Repleta de nuances entre o drama e a comédia, com olhares, gestuais e um domínio de cena absurdo, ela tem aqui uma atuação até melhor do que a alcançada em A Dama de Ferro (2011), seu último Oscar.

De presente para uma atriz tão extraordinária, um personagem fascinante: Florence Foster Jenkins, uma figuraça da alta roda novaiorquina, amante da música, adulada por todos e, por isso, sem "Simankol" quanto aos seus dotes vocais. Personagem real, Florence está lá no Wikipedia: ela foi uma talentosa pianista mirim e poderia ter uma bela carreira senão fosse a sífilis contraída de seu primeiro marido, na noite de núpcias. A partir daí deu aulas de piano para se sustentar até que recebeu a vultosa herança de seu pai e se tornou uma espécie de matrona musical na cidade.


O roteiro bem amarrado foca o final da vida de Florence, quando ela lutava contra os efeitos da sífilis, apesar dos prognósticos negativos dos médicos. Pois bem, já tendo se apresentado no passado informalmente como cantora lírica, ela resolve dar um passo além e contrata um professor renomado e um pianista iniciante (Simon Helberg) para acompanhá-la. Ao seu lado nessa empreitada está o seu companheiro fiel St Clair Bayfield (Hugh Grant), um frustrado ator de teatro. É ele quem organiza tudo e suborna a todos, de forma que sua amada Florence não sofra uma desilusão. Pois sim, ela acredita em seu talento como cantora, algo que beira o surreal diante do que ouvimos! As cenas em que Florence canta são hilárias. Fazia tempo que não ria tanto em um filme. 

E se eu tinha alguma dúvida quanto ao exagero de ruindade de suas performances, a própria Florence original fez questão de deixar para a posterioridade o seu "talento". Há vários vídeos no Youtube com números líricos seus, retirados de 78 rotações. Eis um deles: https://youtu.be/-quQHNriV-Q. Veredicto: a reconstituição musical do filme é perfeita.


Perfeita também é a fotografia. Lentes, tons, iluminação... tudo uma maravilha. O diretor Stephen Frears contou com a elegância de Danny Cohen, que desde O Discurso do Rei (2010) vem emplacando belos e elogiados trabalhos. Ele também assinou Os Miseráveis (2012), Garota Dinamarquesa (2015) e O Quarto de Jack (2015). Brilhante.

Florence, contudo, não é um filme perfeito. Há alguns problemas no ato final, com uma indesculpável pressa em terminá-lo, somada a uma tentativa canhestra em emocionar o público. Apesar dos momentos dramáticos serem importantes durante toda a obra, sinto que cairia melhor um final para cima, até mesmo em aberto. A comédia e a farsa são os melhores trunfos aqui.

Li algumas pessoas falando que Florence é uma "sessão da tarde de luxo". É uma boa definição. Trata-se de um título que dificilmente alguém detestará. Meryl Streep dirigida pelo competente Frears não poderia resultar em um projeto mal sucedido, ainda mais ladeada por uma dupla tão bem escolhida. Hugh Grant é um mar de simpatia e elegância. Já Simon Helberg tropeça em alguns momentos, mas é inevitável o riso quando a lente captura o seu rosto e seus olhares incrédulos diante do canto atrapalhado de sua chefe.


Meryl Streep... Não tenho medo de coloca-la no panteão como a maior das atrizes. São incontáveis seus prêmios e performances arrebatadoras. Cito aqui as para mim inesquecíveis: Kramer vs. Kramer (1979), A Escolha de Sofia (1982), Silkwood (1983), Amor a Primeira Vista (1984), Entre Dois Amores (1985), As Horas (2002), O Diabo Veste Prada (2006), A Dama de Ferro (2011) e Florence (2016).

Será que virá a 17ª indicação ao Oscar para essa atriz sensacional? Diante do que vi nesse filme, já estou na torcida.

Visto em arquivo digital em setembro de 2016.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

A COMUNIDADE (Kollektivet, 2016)


A TAL COMUNIDADE DO TÍTULO É APENAS PANO DE FUNDO PARA UM DRAMA FAMILIAR

país de produção: Dinamarca, Suécia, Holanda // direção: Thomas Vinterberg // elenco: Ulrich Thomsen, Trine Dyrholm, Helene Reingaard Neumann

sinopse: O casal Erik e Anna herda uma casa imensa e resolve abri-la aos amigos e conhecidos. Só que as coisas começam a azedar quando Erick se apaixona por uma aluna e a leva para viver na comunidade, com o consentimento inesperado de Anna.

Metascore: 60 (metacritic.com)

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Talvez A Comunidade seja o pior filme do ótimo diretor dinamarquês Thomas Vinterberg. Digo talvez pois não conheço toda a sua filmografia. É um filme frouxo, até idiota. Não combina com suas obras maiores, Festa de Família (1998), Submarino (2010) e A Caça (2012).

De início temos a improvável decisão do acadêmico sisudo Erick, diante do tédio de sua esposa, de abrir para amigos, conhecidos, agregados e amigos de amigos, um casarão herdado. Tudo bem, o filme se passa no início dos anos 70 onde havia os sonhos da coletividade, de paz, amor, liberdade. Mas algo fica mal amarrado nisso aí. As justificativas são frágeis e o desenrolar para a formação da comunidade carece de substância. Diálogos terríveis, cenas tolas e personagens sem graça formam um breve resumo do primeiro ato do filme.

Até que entra em cena Emma, a bonita e insinuante aluna de Erick. Forma-se um triângulo amoroso. O filme ganha em interesse. A comunidade e seus tipos mal desenvolvidos, com os problemas que a vivência sobre o mesmo teto geram, ficam eclipsados pelo real conflito do filme: o caso extraconjugal de Erick e suas consequências para sua esposa e filha adolescente. Esse drama familiar é até bem vindo, já que a tal comunidade, desperdiçada em suas tolices, vira definitivamente um pano de fundo. Mas é muito pouco e, para piorar, o desfecho é mal elaborado, um anticlímax.

Me causa espanto o desperdício de um enredo tão potente. Vinterberg baseou o roteiro em experiências próprias, vividas em sua adolescência. Além disso, ele está em seu habitat. Filmado na Dinamarca, A Comunidade tem em alguns momentos a mesma pegada de Festa de Família, mas sem a mesma intensidade nos conflitos. Sobra de bom as atuações e algumas cenas interessantes e fortes, não mais.

Visto no Estação Net Rio, em setembro de 2016.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

CAFÉ SOCIETY (Café Society, 2016)


DIVERTIDO, MAS COM IDEIAS DIFUSAS DEMAIS.

país produtor: Estados Unidos da América // direção e roteiro: Woody Allen // elenco: Jesse Eisenberg, Kristen Stewart, Blake Lively, Steve Carell, Corey Stoll

sinopse: Um jovem novaiorquino se muda para a Los Angeles dos anos 30 em busca de uma carreira. Em meio ao glamour de Hollywood, se apaixona pela secretária de seu poderoso tio. Enquanto isso, em Nova York, seu irmão se destaca como um gangster dono de uma casa noturna.

Metascore: 64 (metacritic.com)

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Desde o título genérico, passando pelo uso preguiçoso de um narrador (a voz é do próprio Woody Allen), até a resolução dos conflitos que o filme apresenta, temos aqui um trabalho menor do diretor e roteirista, cuja importância de sua vasta filmografia sempre nos induz a esperar algo mais de seus filmes anuais.

O roteiro é o principal problema de Café Society. Há uma profusão de situações mal estabelecidas e uma dispersão entre os enredos apresentados que atrapalha em muito para que haja um foco e, com isso, maior aproximação do público com o casal romântico. Por isso, assistimos passivos aos encontros e desencontros dos personagens de Jesse Eisenberg e Kristen Stewart, ambos apenas corretos em seus papeis. Não há envolvimento, não torcemos. Não é, nem de longe, um casal que combina.

Parece que assistimos dois filmes: um romântico, ambientado em Los Angeles, com direito a críticas à Hollywood em meio a um tom nostálgico aconchegante; e outro, uma comédia ácida de cores mais frias, ambientado em NY, com gangsters e uma impagável família judaica. Pra piorar, a edição do filme não ajuda para que esses dois filmes se encaixem.

Porém nem tudo está perdido em Café Society. Há cenas belíssimas que são um encanto às retinas. Há ainda boas cenas, com diálogos memoráveis, o que torna o filme um passatempo divertido. Mesmo em um filme menor, temos que aplaudir Woody Allen em uma cena aqui, outra ali. Ainda bem.

Visto no Net Gavea, Shopping da Gávea, Rio de Janeiro, em agosto de 2016.

sábado, 3 de setembro de 2016

AQUARIUS (2016)



SOMENTE UM ADJETIVO JÁ BASTA: MEMORÁVEL.

país produtor: Brasil // direção e roteiro: Kleber Mendonça Filho // elenco: Sônia Braga, Humberto Carrão, Maeve Jinkings, Julia Bernat, Irandhir Santos

sinopse: Para construir um novo empreendimento imobiliário em Recife, uma construtora compra todos os apartamentos de um pequeno edifício na praia de Boa Viagem, menos o da irredutível Clara, uma jornalista que viveu boa parte de sua vida nesse endereço. A partir daí, ela passa a sofrer com ameaças e o assédio antiético e pouco ortodoxo da construtora para que mude de ideia.

Metascore: 85 (metacritic.com)

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Que coisa maravilhosa ver um filme que se passa em um centro urbano brasileiro que não seja Rio de Janeiro ou São Paulo. O diretor, um talento inquestionável, promove aqui um apaixonante libelo pela preservação das coisas e as lembranças que elas carregam. Mas Aquarius é também uma obra envolta em um embate político e ideológico muito caro aos brasileiros, de que falarei mais adiante.

A personagem principal é Clara, uma jornalista sessentona que cresceu e viveu no Edifício Aquarius, de frente para a Praia de Boa Viagem, em Recife. Foi lá que ela criou os seus filhos, é lá que ela tem as memórias vivas de sua mãe e seu falecido marido. Acontece que uma construtora, visando erguer um novo edifício no lugar do Aquarius, resolve comprar todos os apartamentos. Menos o apartamento de Clara, que nem mesmo aceita negociação.


Eis aí o conflito do filme. De um lado, uma senhora querida e respeitada por todos da redondeza, querendo preservar suas coisas, suas memórias. Do outro, "a força da grana que ergue e destrói coisas belas". Eu, como espectador, logo de cara já fico sabendo: não há oferta que pague pelas memórias de Clara. Mas não deixo de me surpreender. O edifício é simpático, mas pouco oferece além da localização. A oferta da construtora daria para Clara comprar um ótimo apartamento, em um edifício melhor, na mesma avenida. Ok, mas e as lembranças, que não podem ser vendidas, como ficam?


Diante dessa trama quixotesca, o principal desafio do roteiro é fazer com que o espectador entenda o lado de Clara que, sozinha, resiste naquele edifício. Que enfrenta o jogo sujo da construtora, forçando-a a ceder. Para isso, o diretor e roteirista entrelaça o embate de Clara contra a construtora com cenas que evocam o poder das coisas, das memórias, da simplicidade.

Entre essas cenas, há duas especiais pela excelência com que foram conduzidas. Uma vem logo no início. É uma festa de família no final dos anos 70. Há um clima de liberalismo no ar. Na vitrola, Gilberto Gil e seu disco Realce põe todos para dançar com "Toda Menina Baiana". É impressionante o naturalismo alcançado por essa sequência (e que permeia todo o filme). É um trabalho admirável e muito, muito difícil de ser alcançado. Só grandes diretores conseguem tal resultado.

Outra cena mostra Clara sendo entrevistada por uma jornalista jovem e despreparada. Clara fala que não tem problema com mídias digitais, que houve Spotify e mp3, mas que precisa de seus discos. Ela então pega um exemplar de Double Fantasy, último disco de John Lennon. Dentro há um recorte de jornal com uma entrevista que Lennon concedeu semanas antes de ser assassinado. Clara comprou esse disco em um sebo e descobriu surpresa aquele recorte dentro do encarte. O disco, somado ao recorte, adquire para ela um significado especial. É como uma mensagem dentro de uma garrafa, lançada ao mar. São as coisas tentando resistir à imaterialidade digital. A jovem jornalista não entende muita coisa, ou não se interessa.


No decorrer do filme, algumas perguntas foram sendo formuladas por mim. E concluo que a intransigência de Clara, a sua força, pode às vezes boicotar a sua própria felicidade. Ela a quase 40 anos extirpou um câncer do seio direito, mas na sua forma de encarar a vida, não se vale de uma cirurgia plástica para reformá-lo. Por causa disso, vemos em uma cena um homem, com quem ela tem um curto relacionamento, se afastar. Não deve ter sido a primeira vez que isso ocorre. Já eu, na minha cadeira de espectador, fico até imaginando a sua filha, com quem Clara tem um duro e afetuoso embate, lhe recomendando por diversas vezes uma consulta com um cirurgião plástico, da mesma forma como recomenda que ela aceite a proposta da construtora. Será que sua filha no fundo não tem razão em seu pragmatismo? Por que manter aquela marca do passado? Por que manter o imóvel sem vizinhos ao redor, em tão contrárias circunstâncias? Responder essas perguntas me leva à razão de ser do filme e à originalidade e humanidade da personagem Clara. Adoro heroínas femininas.


Aquarius ganhou publicidade no Brasil quando seu diretor e parte do elenco aproveitaram o Festival de Cannes para defender Dilma Rousseff contra o processo de impeachment. Em seguida iniciou-se uma celeuma desnecessária e uma absurda campanha de boicote, em que se acusa o filme de usar dinheiro público via financiamento da Lei Rouanet, para defender um governo corrupto. Acho esse tipo de pensamento um tanto equivocado. A Lei Rouanet pode ajudar a obras primas sem grande apelo comercial, como esse filme, existirem.

Além disso, os ecos políticos que ajudaram Aquarius a ser adotado pelos que apoiam a presidente destituída Dilma Rousseff são tão sutis que tornam esse filme atemporal. Mais palmas para o diretor, dessa vez por sua sutileza. Me poupou de um discurso ultrapassado e infantil.

Direção segura e em muitos momentos genial, elenco soberbo, ideias pertinentes. Aquarius é, por enquanto, o melhor filme do ano.

Visto no Net Gávea, no Shopping da Gávea, Rio de Janeiro, em setembro de 2016.