domingo, 24 de abril de 2016

A IMAGEM QUE FALTA (L'image Manquant, 2013)


A MAGIA DO CINEMA EM UM DOCUMENTÁRIO EMOCIONANTE.

país produtor: Cambodja // direção: Rithy Panh

sinopse: Sem imagens de arquivo que pudessem denunciar os horrores da tomada do Cambodja pelo Khmer Vermelho do ditador Pol Pot, o cineasta Rithy Panh dá vazão a suas memórias através de bonecos de argila e maquetes para que o mundo nunca se esqueça de um regime autocrático que matou aproximadamente dois milhões de pessoas em um período de quatro anos.

Metascore: 87 (from metacritic.com)

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Durante o meu curso de cinema na faculdade, uma das questões que mais me instigavam eram filmes, feitos por nós estudantes ou não, em que as dificuldades dos meios de produção muitas vezes levavam os realizadores a soluções mais criativas e interessantes.

Pois, de fato, exemplos em que a criatividade reinventa uma cena ou um desejo desenhado em storyboard existem aos montes, seja em um filme de faculdade, seja em uma produção independente, seja em um blockbuster de um grande estúdio. O cinema é uma arte em que os sonhos do realizador tem que ser, sempre, readequados à realidade da produção, aos prazos, ao capital que se dispõe.

Em A Imagem Que Falta temos o exemplo mais radical da arte sendo gerada apesar (e por causa) da ausência de meios. Aqui, na falta de material de arquivo (destruído), a ideia inovadora que o substitui são pequenos bonecos esculpidos e maquetes, que retratam as traumáticas experiências do cineasta. O resultado é impressionante pela simplicidade em contraste ao apelo dramático que proporciona.

Fiquei muito emocionado com o início desse filme, quando via mãos esculpindo a memória do cineasta, esculpindo o seu pai. A união da escultura artesanal, uma arte tão antiga, pura, singela, com o cinema, a arte nova e tecnológica, é tocante.


Somos então transportados para a infância do cineasta. Roupas coloridas, brincadeiras, família reunida, comida à mesa, estudo. Vemos a nossa frente apenas bonecos e maquetes, ouvimos sons ambientes e a voz em off de um narrador, apenas isso. Mas, estamos lá. É mágico.


Depois os bonecos mudam, ficam tristes, com olhos assustados, roupas pretas. Golpe de Estado. Vemos esses bonecos sendo esculpidos, pintados e é como se víssemos a memória do cineasta vindo a tona com os traumas, a culpa, os medos, a dor das perdas, a revolta. Agora esses bonecos carregam quase sempre uma colher ou algum objeto de trabalho braçal. Somos então convidados a conhecer o horror do Khmer Vermelho de Pol Pot, que massacrou o Cambodja com seus campos de concentração e de trabalho forçado, genocídios e atraso intelectual.


Premiado mundo afora, A Imagem Que Falta é um manifesto contundente contra ideologias totalitárias. Mas, em um plano mais íntimo, é uma homenagem à memória, por ser aquilo que nenhum governante pode controlar, mesmo destruindo fotos, negativos ou proibindo e queimando livros. Pois, a memória, nesse inesquecível filme, se materializa em bonecos de argila como um libelo indomável de resistência frente a horrores ainda presentes no mundo, em diversos países.

Visto em 2015 em arquivo digital.

domingo, 17 de abril de 2016

CONTATO (Contact, 1997)


"SE ESTIVÉSSEMOS SÓS NO UNIVERSO SERIA UM GRANDE DESPERDÍCIO DE ESPAÇO"

país produtor: Estados Unidos da América // direção: Robert Zemeckis // elenco: Jodie Foster, Matthew McConaughey, Tom Skerritt

sinopse: seres extraterrestres respondem aos sinais da primeira transmissão televisiva feita pelo ser humano (em 1936, durante os Jogos Olímpicos de Berlim), enviando o projeto de uma nave espacial que levará um único representante terráqueo à constelação de Vegas.

Metascore: 62 (from metacritic.com)

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Recentemente foi noticiado que o físico Stephen Hawking, o criador do Facebook Mark Zuckerberg e o bilionário russo Yuri Milner iniciaram um ambicioso projeto de exploração espacial. Intitulado Breakthrough Starshot, a sua meta será conhecer mais detalhadamente o sistema solar mais próximo, Alpha Centauri, distante 4,3 anos luz da Terra.

A ideia parece saída de um filme de ficção científica. Para tornar a exploração possível, os cientistas envolvidos usarão minúsculas sondas do tamanho de um microchip impulsionadas por laser. Assim, uma viagem poderá durar cerca de 20 anos, e não 30 mil anos, que é o tempo que se leva até Alpha Centauri com a tecnologia atual. Tal projeto custará 100 milhões de dólares (uma bagatela) e tem como objetivo encontrar planetas potencialmente habitáveis, para um longínquo dia em que a Terra se tornar inabitável.

Mais que o inéditos detalhes da exploração, o que realmente me impressionou foram os comentários no Facebook. Muitos internautas criticavam a empreitada, taxando-a de inútil: "Dinheiro em vão. Quantas pessoas morrem de fome e doença. Deveriam ajudar essas pessoas com o dinheiro que é gasto em pesquisas idiotas". Outros, religiosos, aproveitavam a deixa para enviarem suas mensagens, digamos, espirituais: "Pode procurar nas estrelas, em Marte, na Lua, no raio que o parta, mas só tem um lugar em que a sobrevivência e a vida é garantida, Jesus".

Diante de tamanha ignorância e demagogia, de imediato pensei em Contato, um quase clássico de ficção científica dos anos 1990. Um filme que não canso de rever e está, definitivamente, em meu coração.

Como definir a crença no desconhecido, no caso em seres extraterrestres, senão como um ato de fé? Pois bem, Contato, a partir dessa premissa inquietante, vai longe ao não negar a importância da espiritualidade para todos nós que um dia, diante da magnitude do universo, nos perguntamos se estamos realmente sós. A sua mensagem é que muito pouco sabemos e só nos resta unir forças entre ciência e religião, razão e fé, para trilhar o caminho da verdade. Só assim é possível entendermos o porquê de nossa existência.

Além de sua forte mensagem, Contato conta com dois ótimos personagens. Eleanor Arroway, interpretada na fase adulta por Jodie Foster, é uma cientista ética e corajosa. Com uma carreira acadêmica brilhante, se dedica a um campo da astrofísica muito mal interpretado pela comunidade científica: a busca por vida inteligente extraterrena. Em meio a suas pesquisas ela se apaixona, reciprocamente, por Palmer Joss (Matthew McConaughey), um respeitado guru espiritual. A relação entre esses personagens e o que eles representam (ciência e religião) poderia dar muito pano pra manga, mas o roteiro opta por não dar ênfase a uma conturbada história romântica. Há assuntos mais importantes a serem tratados.


Depois de alguns percalços quanto a falta de financiamento do governo americano, Arroway consegue um aporte privado para sua pesquisa, que possibilita o uso de imensos radiotelescópios para analisar sinais de baixa frequência vindos do espaço. Assim, Arroway vence as dificuldades financeiras, mas não a desconfiança da comunidade científica, representada por outro ótimo personagem, David Drumlin, um respeitado cientista, mas com um ego maior que seus escrúpulos.


Eis que um dia tudo muda (e o filme também). Arroway enfim capta um som forte e contínuo vindo das proximidades da estrela Vega. É aí que o enredo, até o momento sem grandes emoções, ganha um interesse incrível graças aos acontecimentos que se sucedem de forma admiravelmente plausível. É surpreendente a forma engenhosa que o roteiro encontrou para narrar como seria um contato extraterrestre. Não, nada de ETs esguios, carecas e de olhos grandes. Apenas um sinal sonoro que, decodificado, revela um grande manual para a construção de uma espécie de nave espacial que levará um único representante da Terra para um contato extraterrestre.


De imediato o governo americano toma conta de tão sensível informação e Drumlin, por sua posição dentro da esfera federal, tenta herdar os louros de tão impressionante descoberta. É então montada uma comissão para que se escolha o representante que irá ao encontro dos extraterrestres. Arroway é a favorita, mas perde pontos quando declara não acreditar em Deus. O escolhido acaba sendo Drumlin, que na sua explanação diz "o que todos queriam ouvir", e não a verdade, por mais incômoda que ela possa ser.

Além da escolha do representante, o filme foca de forma muito interessante em toda a discussão mundial que se segue à descoberta do sinal sonoro e a construção da enorme espaçonave. Programas de TV e reportagens expõem os receios e a excitação frente ao que está por vir (serão esses ETs confiáveis?). Very Large Array, o observatório onde foram descobertos os sinais, vira um circo, com milhares de pessoas, seitas e igrejas acampando às suas margens.


Para criar todo esse clima, o diretor Robert Zemeckis se utiliza da mesma técnica de seu premiado Forrest Gump, misturando atores às cenas reais do presidente da época, Bill Clinton, e de outras personalidades da mídia e do jornalismo americano. O resultado de tudo isso é divertido e ajuda a dar realismo ao filme. Infelizmente porém, esse realismo sofre para manter-se quando entra em cena o deslocado e improvável milionário Mr. Hadden, uma figura mais esquisita do que qualquer ET. Se a intenção dos realizadores foi exatamente essa, sinto muito, Hadden ficou no meio do caminho e não passa de uma figura caricata.

Sendo o personagem Mr. Hadden um dos pontos negativos da obra, aproveito para falar de outro problema que me incomoda: a direção de Robert Zemeckis. Apesar de tecnicamente impactante, com cenas belíssimas e inesquecíveis, o diretor fez em Contato um trabalho que emula por demais o estilo de Steven Spielberg nos seus mais irritantes momentos. A típica pieguice no uso da trilha sonora chega a enjoar. Zemeckis é responsável pelos ótimos De Volta Para o Futuro e Uma Cilada Para Roger Rabbit, obras leves e divertidas. Já em filmes mais sérios acho ele desnecessariamente sentimental, assim como Spielberg.

Mas, voltemos à história. Se Drumlin foi o escolhido, por que no final das contas é Arroway que faz a viagem espacial? Pois bem, não vale a pena dar mais spoilers. Só digo uma coisa: temos aqui um roteiro surpreendente e assustadoramente plausível ao mostrar os efeitos que uma notícia desse porte poderia causar nas pessoas, principalmente nos fanáticos religiosos.

Além das qualidades inegáveis do roteiro, os aspectos técnicos são admiráveis. Tanto que Contato impacta ainda hoje, quase 20 anos depois de seu lançamento. A sequência inicial, em que fazemos uma viagem sonora e visual desde a Terra até os confins do universo é maravilhosa. A nave espacial em construção, e depois operando, é bastante realista. Mas inesquecível mesmo é a viagem, não só física, mas também espiritual, de Arroway.
 

O momento que mais me chamou a atenção nessa viagem foi quando ela, diante da beleza do que vê, diz em lágrimas que deveriam ter enviado um poeta, não uma cientista, para descrever o que está diante de seus olhos. É isso: a ciência, com seus números, fórmulas e equações, não dá conta de tudo. Assim, é preciso que o cientista seja humano, demasiadamente humano para chegar à verdade. Essa cena é o ponto alto do filme graças também à intensa performance de Jodie Foster. É emocionante.


Contato não é só um ótimo filme. É um filme necessário. Pois a saga de Eleanor Arroway nos leva a discussões profundas a respeito da ciência e religião, razão e fé, em meio a ignorância da "massa". E como nunca, as ideias de Carl Segan continuam pertinentes (estão aí as reações à empreitada de Hawking que não me deixam mentir). Pois sim, ainda somos a mesma civilização microscópica e insignificante de 20 anos atrás quando esse filme foi lançado. E sim, assim seremos por muitos e muitos anos, habitando esse acidente tão raro e especial chamado Terra. Mas uma coisa é certa, o caminho da verdade e do conhecimento sempre será trilhado, queiram ou não os ignorantes. 

Visto no cinema Leblon, sala 1, em 1997, revisto em DVD em 2008 e em arquivo digital 720p em 2013 e 2016.

domingo, 10 de abril de 2016

IDA (Ida, 2013)


COM UM OLHAR INQUIETANTE SOBRE O ANTI-SEMITISMO, EIS AQUI UM FILME NECESSÁRIO E IMPORTANTE.

país produtor: Polônia // direção: Pawel Pawlikowski // elenco: Agata Kulesza, Agata Trzebuchowska

sinopse: Anna é uma órfã criada por freiras na Polônia em 1962 que, pouco antes de ser ordenada, descobre seu passado judeu. Ela então se une à sua única parente viva em uma viagem pelo país em busca de seu passado.

Metascore: 91 (from metacritic.com)

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Ida aborda o anti-semitismo por um ângulo inquietante. É de grande acerto situar a perseguição aos judeus poloneses como uma prática não só dos invasores nazistas entre 1938 e 1945, mas também de parte do povo cristão da Polônia e, por que não, de outros países ocupados.

Pois, de fato, a Alemanha nazista não inventou a perseguição e o massacre aos judeus. Desde muito antes esse povo vinha sendo perseguido pela Europa. Em Ida vemos que os pais e parentes da protagonista foram assassinados não por um característico soldado da SS, mas sim por pessoas comuns, católicas, que se aproveitaram da guerra para se ocupar das propriedades judaicas e prosperarem às custas dos sofrimentos alheios.


Além de contextualizar o Holocausto sob esse ângulo ainda pouco explorado, essa obra consegue dar o devido destaque à religião na histórica perseguição aos judeus. Não à toa, a protagonista Anna é uma noviça às vésperas de ser ordenada que, ajudada por sua tia Wanda, última parente viva, descobre sobre sua origem e nome judaico, Ida. Da química dessa relação e das revelações, nasce em Anna a dúvida sobre sua vocação.

Wanda e Anna são pessoas atormentadas pelo passado, uma entidade mais poderosa do que elas. De um lado, Wanda é infeliz pelas lembranças do sofrimento. Já Anna é infeliz pelo desconhecimento de sua origem, por não saber quem é.

Eis então o grande conflito do filme: a luta emocional de seus personagens contra fatos que levaram à destruição de vidas e de um próspero povo, pelo simples motivo de professarem uma fé diversa. Assim, entre o desafio de encarar o passado reconstruindo o presente ou simplesmente "se matar", o final do filme, mais do que surpreendente, é um desesperançoso epílogo de um povo perseguido e aniquilado na Polônia. De uma população de mais de um milhão, hoje nesse país há pouco mais de dez mil judeus.

Ida é um filme necessário e merecedor dos prêmios que vem conquistando por sua sensibilidade, sutileza e beleza. É muito mais do que sua bela fotografia. É um lamento em forma de arte, que versa de forma elegante sobre um assunto doloroso que não pode ser esquecido jamais.

Visto em 2014, em arquivo digital.

domingo, 3 de abril de 2016

CIDADE DOS SONHOS (Mulholland Drive, 2001)


DAVID LYNCH PROPÕE AO ESPECTADOR UM JOGO... E QUEM O JOGA TEM UMA EXPERIÊNCIA INESQUECÍVEL.

país produtor: Estados Unidos da América, França // direção e roteiro: David Lynch // elenco: Naomi Watts, Laura Harring, Justin Theroux

sinopse: Uma misteriosa morena com amnésia (Laura Harring) se esconde em um apartamento vazio até ser descoberta por uma jovem atriz (Naomi Watts) recém chegada a Los Angeles. Ela não sabe o seu nome, mas ao ver um cartaz de um filme estrelado por Rita Hayworth, se autonomeia Rita. Já Betty, às voltas com seus sonhos de se tornar uma atriz famosa, resolve ajudá-la, sem nem mesmo imaginar que essa jornada irá revelar fortes laços que as unem.

Metascore: 81 (from metacritic.com)

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Cidade dos Sonhos seria originalmente uma nova série televisiva de Lynch, autor em 1990 de um título que foi um divisor de águas na TV americana: Twin Peaks. Porém, a produtora abandonou o projeto e o cineasta, com o apoio do Canal Plus (França), realizou essa grande obra surrealista, que arrebatou elogios, colecionou prêmios e foi, inclusive, indicado ao Oscar de melhor diretor em 2002.

Não é um filme fácil. É preciso despreendimento do espectador para acompanhar a trama que, mesmo tendo um claro fio narrativo, por vezes investe em um clima de sonho, suspensão da realidade e flashbacks desconectados que pode irritar e desorientar. Por isso, vale aqui ressaltar a importância da grande atuação de Naomi Watts, que ajuda com sua beleza e entrega, a sustentar a atenção da plateia nessa difícil jornada que o seu personagem inicia.

A partir daqui, tentarei fazer uma análise sobre o que entendi do filme após a segunda vez que o apreciei. Na primeira, no cinema, entendi muito pouco, apesar de ter gostado muito do que vi. Aviso importante: o texto a seguir contém diversos spoilers.

No meu modo de ver Cidade dos Sonhos é um filme sobre a morte e a busca de duas mulheres, em uma espécie de limbo, pela verdade do que elas eram em vida e as circunstâncias que envolveram o seu trágico fim.

E quem são essas mulheres? Ou melhor, como o filme nos apresenta elas nas primeiras cenas? É importante analisar isso.

Primeiro somos apresentados a Rita, envolvida em um acidente inesperado em Mulholland Drive (estrada famosa de Los Angeles) e que, desorientada, se esconde em um apartamento. Lá ela adormece e sonha cenas desconexas, onde não está presente. Vemos telefones tocando, mafiosos atendendo e falando coisas do tipo "ela continua desaparecida". Há também uma memorável cena de um homem desmaiando ao ver uma criatura horripilante. A essa altura o espectador desavisado deve estar se perguntando "que diabos é isso"... Pois é, isso é David Lynch.

Em seguida surge em cena Betty, personagem de Watts, que se mostra linda, feminina, talentosa e sorridente ao chegar em Los Angeles. Seu desejo: ser uma atriz reconhecida, brilhar em Hollywood.

O contraponto entre essas duas personagens se estabelece quando elas se encontram no apartamento cedido pela tia de Betty, onde Rita se escondeu. Rita está desmemoriada, frágil. Já Betty, repleta de atitude e coragem, resolve ajuda-la, motivada por um sentimento de proteção que, mais tarde, entenderemos ser de remorso, oriundo de quando elas eram íntimas, em vida. No entanto, nesse início de filme, Betty e Rita nada sabem sobre isso. Estão em processo de autoconhecimento, vivendo hora um sonho dentro de um sonho (Rita), hora na irrealidade, na pura fantasia (Betty).



Esses dois estados, fantasia e sonho, não são muito claros para o espectador. Em diversos momentos, não sabemos onde termina um e começa o outro. Não sabemos nem mesmo se há algo de "real" no que os personagens estão vivendo em tela. Acho isso encantador nesse filme, por não querer e nem se atrever a nos dar respostas prontas.

O filme avança. Há uma linha narrativa que centra na busca de ambas sobre quem é Rita. Há também a busca de Betty pelo reconhecimento como atriz, que faz um teste de elenco bem sucedido. Há ainda os sonhos - ou memórias? - de Rita, em que conhecemos melhor outros personagens do filme e, em especial, Adam Kesher, um diretor pressionado pelos produtores a escalar uma atriz em seu próximo filme. Esse personagem é peça chave na conexão, em vida, entre Betty e Rita.

A busca de ambas pelo passado de Rita culmina com a ida ao Club Silêncio. É o momento mais grandioso do filme. As palavras proferidas no palco do clube “Não há banda. É só uma gravação. É uma ilusão” são direcionadas não só para as personagens, mas para nós espectadores. Ainda no clube, dentro de sua bolsa, Betty encontra um cubo azul. O rosto das duas diante desse cubo denota não só surpresa, mas medo do que pode estar por revelar-se. Elas levam o cubo ao apartamento, o cubo é aberto com uma chave que simboliza a morte e ambas, surpreendentemente, somem do quarto. A tia de Betty, que vimos no início do filme carregando as malas para uma viagem, abre a porta do quarto. Ela nada encontra, apesar de ter sentido a presença de algo estranho. Será que ela viajou mesmo ou sempre esteve presente naquele apartamento?

A partir daí o filme dá uma guinada e um nó na cabeça do espectador. Somos apresentados à Betty real, com dentes sujos, trejeitos masculinos, sem maquiagem, morando em uma casa escura, suja e feia. Descobrimos ainda algo surpreendente: ela é a mulher morta que apareceu em uma dramática cena anterior, antes da ida ao Club Silêncio.

E Rita, quem é Rita realmente? Dominadora, manipuladora e maldosa, ela é amante ocasional de Betty e está noiva de Adam, o diretor de cinema.

Betty sente que está sendo deixada para trás, sente que é, no fundo, uma fracassada. Nasce então nela o desejo de matar Rita. O plano é executado com a ajuda de um bandido pé de chinelo. Mas Betty, atormentada pelo remorso e pelos sonhos e lembranças com Rita, se suicida.

Ou seja, temos aqui uma história aparentemente comum envolvendo um triângulo amoroso, traição, vingança e tragédia, só que contada de uma forma subvertida, simbólica e muito inteligente. Com ecos de filmes noir, críticas à leviandade artística da sub-hollywood e cenas de lesbianismo sensacionais, Cidade dos Sonhos é a obra-prima inesperada de David Lynch, esse cineasta tão ímpar, tão outsider.

Cineasta esse com uma filmografia repleta de obras onde o surrealismo se faz presente, sempre de uma forma respeitosa à tradição iniciada por Buñuel, mas também com um caráter muito particular, onde a subversão da narrativa tradicional ao mesmo tempo que afasta um certo tipo de público, o aproxima de outro, mais acostumado a filmes artísticos e sensitivos, que não se preocupam com o entretenimento em primeiro lugar.

Seja como for, eu me divirto muito toda vez que vejo esse filme, pois ele é como um livro com diversas páginas em branco, onde cada espectador é convidado a preenchê-las. E toda vez que revejo Cidade dos Sonhos as páginas são preenchidas com algo novo.

Lembro-me que a repercussão à época do lançamento de Cidade dos Sonhos foi muito grande, com muitos querendo compreender essa história trágica. Não à toa, é possível encontrar na internet muitas outras interpretações, desde aqueles tempos. Felizmente, não há um caminho certo a seguir ao ver esse filme, por isso o meu conselho é que se você for assisti-lo, vá de mente aberta e depois chegue a suas próprias conclusões, que podem ser bem diferentes das minhas.

Visto em 2002 no Espaço Unibanco de Cinema. Revisto desde então por 3 vezes em DVD e, em 2014, no Netflix.